A busca por biomateriais avançados tem impulsionado inovações significativas na engenharia química e biomédica (Ratner et al., 2013). Projetados para interagir com sistemas biológicos, esses materiais são fundamentais em áreas como engenharia de tecidos, liberação de fármacos e dispositivos implantáveis (Hoffman, 2012). Um dos principais desafios é mimetizar as propriedades do microambiente biológico natural, como topografia, rigidez e adesão celular (Langer & Tirrell, 2004).
Nesse cenário, os hidrogéis destacam-se como materiais promissores por sua biocompatibilidade, elasticidade e estrutura porosa ajustável (Peppas et al., 2000), ideais para cultura celular, liberação de biomoléculas e regeneração tecidual (Maitra & Sinha, 2012). Suas propriedades físico-químicas podem ser moduladas conforme a aplicação, inclusive para responder a estímulos externos (Zhang & Khademhosseini, 2017).
A escolha do polímero base é crítica. Muitos polímeros sintéticos ou de origem animal apresentam limitações quanto à biocompatibilidade e à sustentabilidade. A celulose bacteriana (CB), produzida por bactérias como Komagataeibacter xylinus, destaca-se por sua alta pureza, ausência de lignina, estrutura nanofibrilar e resistência mecânica (Gorgieva & Kokol, 2011; Klemm et al., 2001). Além disso, sua biocompatibilidade e biodegradabilidade tornam a CB uma matriz ideal para hidrogéis aplicados à cultura celular e à liberação controlada de biomoléculas (Contreras-Esquivel et al., 2012).
2. Fundamentos da Celulose Bacteriana
2.1 Biossíntese
A CB é produzida por bactérias como Komagataeibacter xylinus, que sintetizam celulose na interface ar-líquido do meio de cultura. O processo envolve a polimerização da glicose via UDP-glicose, formando uma rede tridimensional de nanofibrilas (Ross et al., 1991; Hestrin & Schramm, 1954).
2.2 Estrutura e Morfologia
Quimicamente idêntica à celulose vegetal, a CB difere por sua morfologia: uma rede de nanofibrilas com 50–100 nm de diâmetro, altamente cristalina (celulose I), que confere elevada resistência mecânica e estabilidade (Klemm et al., 2001; Krystynowicz et al., 2009).
2.3 Propriedades Relevantes
- Porosidade: Estrutura interconectada que facilita o transporte de nutrientes (Petersen & Gatenholm, 2011).
- Hidrofília: Alta capacidade de retenção de água, essencial para aplicações biomédicas (Czaja et al., 2004).
- Resistência Mecânica: Suporta ambientes biológicos exigentes (Svensson et al., 2005).
- Pureza: Livre de lignina e hemicelulose, o que reduz imunogenicidade e facilita o processamento (Lin & Tung, 2017).
3. Comparação com Outras Fontes de Celulose
- Celulose Vegetal: Abundante, mas requer tratamentos agressivos para remoção de lignina/hemicelulose, o que prejudica suas propriedades e sustentabilidade (Moon et al., 2011).
- Celulose Sintética: Difícil e cara de sintetizar com estrutura e função equivalentes à natural; resulta em materiais com desempenho inferior em aplicações biomédicas.
3.1 Obtenção de Hidrogéis a partir da CB
Métodos de produção
- Hidrogeis de CB nativa: Sua produção é dada pelo cultivo de bactérias em meio Hestrin-Schramm (HS) onde é sujeita a fermentação estática durante 7 a 10 dias em uma temperatura média de 29°C, formando assim uma camada espessa e gelatinosa. Após a formação da camada, é feita uma lavagem com NaOH (1%) para remover as células bacterianas e estará pronto para o uso.
- Mistura com outros polímeros: Tem como objetivo vincular outras propriedades como bioatividade, biocompatibilidade e condutividade. Podem ser utilizados polímeros naturais como a gelatina e os sintéticos como o álcool polivinílico (PVA). Seu processo se dá pela mistura em solução aquosa, seguida por gelificação por íons ou congelamento, por fim são moldadas de acordo com o interesse e são submetidas a um processo de secagem.
Técnicas de reticulação
- Reticulação química: Forma ligações covalentes permanentes entre as cadeias poliméricas deixando o hidrogel mais resistente e estável porém para isso requer reagentes reticulantes, os crosslinkers. Entre os agentes químicos mais usados estão:
- Reticulação física: Tem como princípio em ligações não covalentes ( ligação de hidrogênio, forças eletrostáticas e interações hidrofóbicas), são também reversíveis e geralmente não usam agentes tóxicos.
- Gelificação iônica: Os íons formam pontes entre grupos hidroxilas e carboxílicos.
- Congelamento-descongelamento (freeze-thaw): Mistura em solução homogênea que é submetida a congelamento a -20°C e descongelamento a 25°C com o objetivo de formar cristais e reorganizar as moléculas.
- Auto agregação via ligações de hidrogênio: Formação de uma rede de hidrogel pela própria CB por reorientação e empacotamento de cadeias via ligação de hidrogênio após secagem e reidratação.
- Reticulação combinada: Utiliza técnicas físicas e químicas para otimizar as propriedades, permitindo maior controle de rigidez, degradação e capacidade de inchaço.
Segue esquema de produção de hidrogel por técnicas de reticulação:
Caracterização dos hidrogeis:
- Técnicas espectroscópicas
4. Aplicações em Cultura Celular
- Propriedades que favorecem a adesão, proliferação e diferenciação celular
Os hidrogéis de celulose bacteriana (CB) apresentam um conjunto de propriedades físico-químicas e estruturais que os tornam altamente promissores como scaffolds para engenharia de tecidos e outras aplicações biomédicas. Entre as características mais relevantes está a estrutura nanofibrilar tridimensional, que mimetiza a matriz extracelular (ECM) natural dos tecidos, favorecendo a adesão celular. Essa rede densa e porosa permite o ancoramento de células por meio de interações físico-químicas, como ligações hidrogênio e interações eletrostáticas, mesmo sem a presença de ligantes específicos.
Além disso, a alta capacidade de retenção de água dos hidrogéis de CB cria um microambiente hidratado ideal para manter a viabilidade e a funcionalidade celular, promovendo a troca eficiente de nutrientes, gases e metabólitos. Essa umidade contínua evita o colapso celular e facilita a proliferação de diversos tipos celulares, incluindo fibroblastos, queratinócitos, células-tronco e osteoblastos. A biocompatibilidade intrínseca da celulose bacteriana, associada à sua natureza não citotóxica e à ausência de resíduos de síntese, também contribui para respostas celulares favoráveis, com mínima reação inflamatória.
A porosidade e a arquitetura da rede polimérica podem ser moduladas por técnicas de modificação física ou química, de modo a otimizar o tamanho e a interconectividade dos poros, o que é essencial para a migração celular e formação de tecido novo. Além disso, a CB pode ser funcionalizada com biomoléculas específicas, como peptídeos (ex: RGD), proteínas da matriz extracelular (como colágeno e fibronectina), ou fatores de crescimento, visando estimular a diferenciação celular direcionada, como osteogênese, condrogênese ou neurogênese. A mecânica da matriz, por sua vez, também desempenha papel importante: o módulo de elasticidade do hidrogel pode influenciar o destino celular, uma vez que células-tronco mesenquimais tendem a se diferenciar de maneira dependente da rigidez do substrato. Hidrogéis mais rígidos favorecem a diferenciação osteogênica, enquanto os mais macios são associados à neurogênese. Em conjunto, essas propriedades tornam a celulose bacteriana uma plataforma versátil e eficiente para suporte à adesão, crescimento e especialização celular, sendo uma excelente candidata para aplicações em regeneração de tecidos, engenharia biomédica e terapias avançadas.
- Comparativo com scaffolds convencionais (colágeno, PLA, PEG)
- Estudos experimentais relevantes: tipos celulares cultivados, desempenho observado
Diversos estudos têm demonstrado o potencial dos hidrogéis de celulose bacteriana como matrizes para o cultivo celular, evidenciando seu desempenho favorável em termos de adesão, proliferação e diferenciação de diferentes tipos celulares. A versatilidade da CB permite sua aplicação em variados contextos biomédicos, desde engenharia de tecidos até sistemas de liberação de fármacos.
Entre os tipos celulares mais estudados, destacam-se os fibroblastos, células essenciais na regeneração de tecidos conjuntivos. Em hidrogéis de CB, fibroblastos apresentam boa adesão e proliferam eficientemente, mantendo morfologia típica e capacidade funcional, o que é atribuído à estrutura porosa e hidratada do material que facilita a difusão de nutrientes. Esses resultados indicam o potencial da CB para uso em curativos para feridas e scaffolds para regeneração de pele.
Outro grupo amplamente investigado são as células-tronco mesenquimais (CTMs), que possuem capacidade de diferenciação em múltiplas linhagens celulares. Estudos mostram que as CTMs cultivadas em hidrogéis de CB conseguem manter sua viabilidade e capacidade proliferativa, além de responder positivamente a sinais bioquímicos quando o hidrogel é funcionalizado com fatores de crescimento ou peptídeos específicos. Em alguns casos, houve indução de diferenciação osteogênica e condrogênica, sugerindo a utilidade desses materiais na engenharia óssea e cartilaginosa.
Os queratinócitos também foram cultivados em hidrogéis de CB, principalmente para desenvolvimento de modelos de pele in vitro. Nesses estudos, as células aderem e proliferam adequadamente, formando camadas celulares organizadas que simulam a epiderme. A biocompatibilidade da CB e sua capacidade de manter um ambiente hidratado são cruciais para esse sucesso, que pode ser ampliado com adição de componentes bioativos.
Além disso, hidrogéis de CB foram testados com osteoblastos, células responsáveis pela formação óssea. A matriz nanofibrilar da CB promove adesão robusta e crescimento celular, especialmente quando combinada com componentes minerais ou polímeros bioativos, resultando em melhor deposição de matriz extracelular mineralizada e expressão de marcadores osteogênicos.
Estudos também relatam o cultivo de células neurais e gliais, demonstrando que hidrogéis de CB podem suportar a sobrevivência e até mesmo a diferenciação neuronal, sendo promissores para aplicações em neuroengenharia e regeneração do sistema nervoso.
Em síntese, os resultados desses estudos indicam que os hidrogéis de celulose bacteriana oferecem uma plataforma versátil e eficiente para o cultivo celular, com desempenho dependente do tipo celular, da composição e modificação do hidrogel, além das condições de cultivo. A capacidade de modular a estrutura e funcionalidade da CB permite seu uso em uma ampla gama de aplicações biomédicas.
- Potencial em engenharia de tecidos
Os hidrogéis de celulose bacteriana (CB) têm se destacado como materiais promissores na engenharia de tecidos devido às suas propriedades físicas, químicas e biológicas únicas, que os tornam ideais para atuar como scaffolds — estruturas de suporte para o crescimento celular e formação de novos tecidos. A estrutura tridimensional nanofibrilar da CB mimetiza a matriz extracelular natural, oferecendo um ambiente favorável para a adesão, proliferação e diferenciação celular, processos fundamentais para a regeneração tecidual.
Além disso, a alta capacidade de retenção de água confere aos hidrogéis de CB uma hidratação contínua, garantindo um microambiente úmido que facilita a troca de nutrientes e oxigênio, essenciais para a viabilidade celular em tecidos complexos. Sua excelente biocompatibilidade, associada à baixa imunogenicidade, permite o contato direto com células e tecidos vivos sem causar respostas inflamatórias significativas, o que é crucial para implantes e aplicações clínicas.
Na engenharia de tecidos, o desempenho mecânico do scaffold é vital para suportar o tecido em desenvolvimento. Os hidrogéis de CB apresentam resistência mecânica adequada, mesmo em estado hidratado, podendo ser ainda modificados para aumentar sua rigidez ou flexibilidade conforme a necessidade do tecido-alvo, como pele, cartilagem ou osso. Essa capacidade de personalização permite a criação de scaffolds sob medida para diferentes aplicações.
Outro aspecto importante é a possibilidade de funcionalização química da CB, incorporando moléculas bioativas, fatores de crescimento ou sequências peptídicas que estimulam a diferenciação celular específica, melhorando a regeneração do tecido desejado. Além disso, a porosidade ajustável favorece a migração celular e a vascularização, elementos cruciais para a formação e integração do tecido novo.
Estudos têm mostrado que hidrogéis de CB são eficazes no suporte a diversos tipos celulares, incluindo fibroblastos, células-tronco mesenquimais, osteoblastos e células neurais, ampliando seu potencial de uso em engenharia de tecidos ósseo, cartilaginoso, dérmico e nervoso. Essa versatilidade, aliada à sustentabilidade de sua produção biotecnológica, posiciona a celulose bacteriana como uma alternativa ecológica e eficiente frente aos biomateriais tradicionais.
Em suma, o potencial dos hidrogéis de celulose bacteriana em engenharia de tecidos reside na combinação equilibrada de biocompatibilidade, propriedades mecânicas, capacidade de hidratação e funcionalização bioativa, que permitem a criação de scaffolds eficazes para regeneração tecidual, oferecendo novas perspectivas para tratamentos clínicos e terapias regenerativas.
5. Aplicações em Liberação de Biomoléculas
5.1 Mecanismos de Liberação Controlada
A liberação de agentes terapêuticos a partir de hidrogéis de CB pode ocorrer por diferentes mecanismos, que muitas vezes atuam de forma combinada. A escolha do mecanismo dominante depende da natureza do hidrogel, das características físico-químicas do agente encapsulado e das condições do microambiente fisiológico.
5.2 Difusão
A difusão é o mecanismo predominante na maioria dos sistemas de liberação passiva. A substância ativa migra ao longo de um gradiente de concentração, de dentro da matriz para o meio externo. Esse processo é descrito frequentemente por modelos baseados na Lei de Fick. Fatores que influenciam essa difusão incluem:
- Diâmetro e conformação da molécula ativa;
- Grau de entrecruzamento e compactação da rede polimérica;
- Interações físicas com as fibrilas de celulose;
- Porosidade e grau de hidratação do hidrogel.
Hidrogéis de CB não modificados possuem uma rede densa e altamente ordenada que pode limitar a difusão de macromoléculas, o que motiva estratégias de modificação para otimizar esse transporte.
5.3 Degradação
A CB pura não é facilmente degradada por enzimas presentes no corpo humano, o que pode ser vantajoso para aplicações de longa duração. No entanto, para sistemas que requerem liberação associada à biodegradação, são aplicadas estratégias como:
- Copolimerização com polímeros degradáveis (ex.: alginato, PCL);
- Oxidação controlada para introduzir grupos que fragilizam a rede;
- Funcionalização com enzimas específicas ou pH-responsivas.
A degradação resulta na erosão da matriz e liberação progressiva da carga encapsulada, sendo útil em terapias que requerem liberação pulsátil ou prolongada.
5.4 Interações Químicas
Moléculas bioativas podem interagir com a CB por meio de interações não covalentes (como ligações de hidrogênio, interações iônicas e hidrofóbicas) ou, em sistemas mais elaborados, por ligação covalente reversível. Essas interações afetam:
- A retenção do ativo na matriz;
- A taxa de liberação;
- A seletividade da liberação frente a estímulos (pH, íons, temperatura, etc.).
A engenharia dessas interações permite o desenvolvimento de sistemas inteligentes de liberação, sensíveis ao ambiente patológico.
6. Modificações da Celulose Bacteriana para Controle de Liberação
Apesar das excelentes propriedades da CB, modificações são frequentemente necessárias para adaptar suas características estruturais e químicas às exigências de liberação controlada.
6.1 Funcionalização Química
A superfície da CB contém grupos hidroxila reativos que podem ser funcionalizados com diferentes grupos químicos, conferindo-lhe novas propriedades. Exemplos incluem:
- Carboxilação (via TEMPO (N-oxil-2,2,6,6-tetrametilpiperidina) ou ácido periódico): introduz grupos –COOH que melhoram a afinidade por proteínas ou peptídeos catiônicos;
- Aminação: permite interações eletrostáticas com fármacos aniônicos;
- Sulfonação ou fosforilação: adiciona grupos análogos a componentes naturais do ECM, como glicosaminoglicanos, favorecendo a bioatividade;
- Modificações redox-sensíveis: para liberação em ambientes oxidativos, típicos de tecidos inflamados ou tumores.
Essas modificações podem tornar a liberação mais precisa, responsiva e seletiva.
6.2 Produção de Compósitos e Híbridos
A incorporação de outros polímeros à matriz de CB permite ajustar propriedades mecânicas, porosidade e resposta biológica. Exemplos incluem:
- CB-alginato: aumenta a porosidade e a capacidade de encapsulação;
- CB-quitosana: adiciona caráter antimicrobiano e cargas positivas;
- CB-gelatina: promove melhor interação celular e degradação enzimática;
- CB-PEG: melhora a flexibilidade e cria espaços para moléculas maiores.
Esses sistemas são especialmente eficazes em liberação de macromoléculas ou em engenharia de tecidos.
6.3 Nanotecnologia e Materiais Responsivos
A adição de nanomateriais à CB resulta em sistemas inteligentes de liberação. Exemplos incluem:
- Nanopartículas magnéticas (Fe₃O₄): ativação por campo magnético externo;
- Nanopartículas lipídicas ou poliméricas: para carregamento e liberação de múltiplos ativos;
- Nanocristais de celulose funcionalizados: que aumentam a área superficial e permitem interações direcionadas.
Essa abordagem amplia as possibilidades de liberação controlada sob comando externo.
7. Exemplos Práticos de Aplicação
A versatilidade da CB permite aplicações práticas na engenharia química, especialmente no desenvolvimento de processos industriais e biotecnológicos que envolvem encapsulamento, liberação controlada, separações e catálise.
7.1 Encapsulamento e liberação de enzimas industriais
- Hidrogéis de CB têm sido utilizados para imobilização de enzimas como lipases, proteases e celulases, permitindo sua reutilização em processos catalíticos industriais. A liberação lenta e controlada de enzimas evita desnaturação precoce e melhora a eficiência do processo.
- Exemplos incluem a hidrólise contínua de substratos em reatores enzimáticos, onde a CB serve como suporte bioinerte, altamente hidratado e com elevada estabilidade térmica.
7.2 Microencapsulamento de aditivos em alimentos e cosméticos
- A CB é aplicada na liberação gradual de antioxidantes, aromas, corantes naturais ou agentes conservantes em formulações alimentícias e cosméticas. A proteção da substância ativa em microambientes agressivos (pH, luz UV, temperatura) é essencial em formulações de longa validade.
- Exemplo: liberação de vitamina C encapsulada em CB funcionalizada para cremes anti-idade.
7.3 Suporte em sistemas de liberação controlada para agroquímicos
- Hidrogéis de CB são explorados como veículos para liberação controlada de fertilizantes, pesticidas ou herbicidas. A liberação modulada reduz perdas por lixiviação e aumenta a eficiência agronômica.
- Exemplo: liberação de ureia ou nitrato de amônio de hidrogéis CB-argila em solos arenosos.
8. Desafios e Perspectivas na Engenharia Química
8.1 Escalonamento da produção e purificação da CB
Os hidrogéis de celulose bacteriana (CB) têm se destacado como biomateriais promissores para aplicações em cultura celular e liberação de biomoléculas, especialmente em contextos de engenharia tecidual e medicina regenerativa. Esses materiais, produzidos por bactérias como Gluconacetobacter hansenii, são compostos por uma rede tridimensional de nanofibras de celulose, apresentando características únicas como elevada biocompatibilidade, moldabilidade, pureza e capacidade de retenção de água. Além disso, a CB é livre de lignina e hemicelulose, o que aumenta sua pureza em comparação à celulose vegetal, favorecendo seu uso em aplicações médicas sensíveis.
Um dos principais desafios na utilização da CB em aplicações biomédicas é o escalonamento da sua produção. Estudos recentes propuseram estratégias baseadas no ecodesign para produção em maior escala, utilizando ferramentas como a Avaliação de Ciclo de Vida (ACV) para comparar diferentes rotas de produção. Por exemplo, a rota utilizando melaço de soja hidrolisado (MSH) demonstrou menor impacto ambiental e maior rendimento em comparação ao meio sintético Hestrin & Schramm (HS), sendo assim indicada para implementação em escala piloto. A rota MSH apresentou rendimento de até 11,7 g/L de CB com impacto ambiental reduzido em categorias como mudança climática e toxicidade humana.
8.2 Integração com processos industriais (bioprocessos, downstream)
A integração da produção de CB com processos industriais de bioprocessos e purificação downstream também foi discutida. A modelagem computacional e simulações em software (SuperPro Designer®) permitiram prever o comportamento da rota MSH em escala industrial, considerando aspectos como consumo energético, uso de água, e impacto ambiental nas diferentes etapas do processo produtivo. Avaliações indicaram que o preparo do meio de cultura e o uso de reagentes como NaOH são etapas críticas para impactos ambientais, sendo propostas alternativas como substituição por KOH, que reduziu significativamente a escassez hídrica.
8.3 Desenvolvimento de novos compósitos e sistemas híbridos (ex.: CB-nanopartículas)
No que tange ao desenvolvimento de novos compósitos, a dissertação de Silva (2012) apresenta experimentos com a incorporação de glicose e dextrina no meio de cultivo da CB, resultando em membranas com propriedades estruturais diferenciadas. Essa modificação in situ alterou a morfologia das fibras e influenciou positivamente na adesão e proliferação celular. Estudos futuros podem incluir a combinação com nanopartículas metálicas ou bioativas, criando sistemas híbridos com propriedades adicionais como atividade antimicrobiana ou condutividade elétrica, úteis em sensores e dispositivos de bioeletrônica.
As oportunidades em áreas emergentes como medicina regenerativa estão bem fundamentadas. A dissertação demonstra o uso de plataformas 3D multi compartimentalizadas, com potencial para separação de ambientes celulares distintos e liberação controlada de substâncias. Além de seu uso como scaffold para regeneração de tecidos, essas plataformas podem atuar como sistemas de liberação controlada de fármacos, aproveitando as propriedades de difusão seletiva da CB.
8.4 Oportunidades em áreas emergentes (bioeletrônica, sensores, medicina regenerativa)
Sob a perspectiva da engenharia química, os desafios incluem não apenas a produção em larga escala, mas também a sustentabilidade dos processos, o uso eficiente de recursos, e a geração de tecnologias limpas. A estratégia de ecodesign aplicada por Silva et al. propõe um modelo replicável para outras tecnologias emergentes, apontando para a necessidade de abordagem interdisciplinar que una conhecimento técnico, ambiental e biotecnológico. Tais abordagens também reforçam o papel da engenharia química como integradora entre pesquisa de materiais, desenvolvimento de processos sustentáveis e aplicação industrial de biomateriais inovadores.
Conclusão
A celulose bacteriana (CB) vem se consolidando como uma plataforma biomaterial de elevada relevância para aplicações biomédicas avançadas, especialmente nas áreas de engenharia de tecidos e liberação controlada de biomoléculas. Sua produção por microrganismos como Komagataeibacter xylinus resulta em um polímero natural de alta pureza, isento de lignina e hemicelulose, o que a diferencia da celulose vegetal e elimina a necessidade de etapas agressivas de purificação. Essa característica, aliada à sua biocompatibilidade intrínseca e biodegradabilidade seletiva, torna a CB particularmente atraente para uso em sistemas biológicos sensíveis.
Os hidrogéis derivados de CB apresentam uma rede tridimensional de nanofibrilas com elevada porosidade e capacidade de retenção hídrica, mimetizando a matriz extracelular (ECM) natural. Essa arquitetura permite a difusão eficiente de nutrientes e gases, promovendo adesão, proliferação e diferenciação celular. Estudos experimentais têm demonstrado resultados expressivos com diferentes tipos celulares, incluindo fibroblastos, queratinócitos, células-tronco mesenquimais, osteoblastos e células neurais, reforçando a aplicabilidade da CB em contextos como regeneração dérmica, osteocondral e neural.
Além das propriedades físico-químicas e mecânicas favoráveis, os hidrogéis de CB podem ser modificados por meio de técnicas de reticulação física, química ou combinada, e ainda funcionalizados com peptídeos bioativos (como RGD), proteínas da ECM (colágeno, fibronectina) ou fatores de crescimento. Tais modificações ampliam significativamente a bioatividade e especificidade do material, possibilitando sua customização para aplicações específicas, como scaffolds osteogênicos, neurogênicos ou angiogênicos.
No contexto de liberação controlada de biomoléculas, os hidrogéis de CB têm se mostrado eficazes na encapsulação e liberação sustentada de fármacos, proteínas terapêuticas e fatores de crescimento. Mecanismos como difusão controlada, degradação programada e interações químicas seletivas têm sido explorados, com destaque para a incorporação de agentes reticulantes inteligentes (como genipina ou EDC/NHS) e o uso de compósitos com nanopartículas bioativas. Isso abre caminhos para o desenvolvimento de sistemas terapêuticos responsivos a estímulos (pH, temperatura, enzimas), altamente desejáveis em medicina personalizada.
Contudo, apesar do alto desempenho funcional em escala laboratorial, desafios significativos persistem no que tange à viabilidade econômica e escalonamento industrial da produção de CB. Estudos recentes propuseram rotas mais sustentáveis, como o uso de melaço de soja hidrolisado (MSH), que apresentou maior rendimento e menor impacto ambiental em comparação ao meio sintético Hestrin-Schramm (HS). Além disso, a aplicação de ferramentas como Avaliação de Ciclo de Vida (ACV) e modelagem de processos industriais (ex.: SuperPro Designer®) tem sido fundamental para otimizar etapas de produção, purificação e downstream, visando à viabilidade comercial dos hidrogéis de CB.
Do ponto de vista da engenharia química, a CB representa um caso paradigmático de biomaterial emergente, cujas características permitem integrar avanços em bioprocessos, ciência de materiais, modelagem computacional e sustentabilidade industrial. A criação de sistemas híbridos (CB-nanopartículas, CB-polímeros condutores) e plataformas multicamadas funcionalizadas reforça ainda mais seu potencial em áreas emergentes como bioeletrônica, sensores implantáveis, dispositivos vestíveis e medicina regenerativa.
Em síntese, os hidrogéis de celulose bacteriana reúnem um conjunto de propriedades estruturais, químicas, mecânicas e biológicas altamente desejáveis. Sua modularidade, sustentabilidade e compatibilidade com abordagens multidisciplinares posicionam a CB como um dos mais promissores biomateriais da atualidade, apto a atender às demandas da próxima geração de terapias avançadas, dispositivos biomédicos e estratégias de engenharia de tecidos. O sucesso dessa trajetória, no entanto, dependerá de esforços coordenados entre ciência, tecnologia e inovação, especialmente na superação de barreiras produtivas e na validação pré-clínica de seus sistemas derivados.
Referências
Ratner, B. D., Hoffman, A. S., Schoen, F. J., & Lemons, J. E. (2013). Biomaterials Science: An Introduction to Materials in Medicine. Academic Press.
Hoffman, A. S. (2012). Hydrogels for biomedical applications. Advanced Drug Delivery Reviews, 64, 18-23.
Langer, R., & Tirrell, D. A. (2004). Designing materials for biology and medicine. Nature, 428(6982), 487-492.
Peppas, N. A., Bures, Y., Leobandung, W., & Ichikawa, H. (2000). Hydrogels in pharmaceutical formulations. Progress in Polymer Science, 25(9), 1279-1306.
Maitra, J., & Sinha, N. (2012). Scaffolds in tissue engineering: Role of hydrogels. International Journal of Biological Macromolecules, 50(5), 1147-1158.
Zhang, Y. S., & Khademhosseini, A. (2017). Biomaterials for tissue engineering: A historical perspective. ACS Nano, 11(12), 11777-11784.
Gorgieva, S., & Kokol, V. (2011). Bacterial cellulose: A superpolymer for wound care. Carbohydrate Polymers, 86(4), 1437-1451.
Klemm, D., Schmauder, H. P., & Fink, H. P. (2001). Bacterial synthesized cellulose-nanofibril-networks-novel materials for new perspectives. Angewandte Chemie International Edition, 40(22), 4153-4158.
Lin, H. L., & Tung, T. H. (2017). Recent advances in bacterial cellulose-based biomaterials for biomedical applications. Cellulose, 24(10), 4195-4211.
Contreras-Esquivel, J. C., Morales-Barrera, L., & Rodríguez-Herrera, R. (2012). Microbial cellulose: An overview of its properties and applications. Enzyme and Microbial Technology, 51(3), 133-145.
Ross, P., Weinhouse, R., Aloni, Y., Michaeli, D., Weinberger-Ohana, P., Benziman, M., et al. (1991). Regulation of cellulose synthesis in Acetobacter xylinum by cyclic diguanylic acid. The Journal of Biological Chemistry, 266(25), 16391-16396.
Iguchi, M., Yamanaka, S., & Budhiono, A. (2000). Bacterial cellulose—A masterpiece of nature’s art. Applied Microbiology and Biotechnology, 53(4), 384-391.
Hestrin, S., & Schramm, M. (1954). Synthesis of cellulose by Acetobacter xylinum. 2. Preparation of the bacterial cellulose and the effect of glucose and carbon sources on its formation. Biochemical Journal, 58(3), 441-447.
Krystynowicz, A., Czaja, W., Pomorska, M., & Wasiak, J. (2009). The effect of temperature on bacterial cellulose production by Gluconacetobacter xylinus. Journal of Industrial Microbiology & Biotechnology, 36(7), 903-911.
Petersen, N., & Gatenholm, P. (2011). Bacterial cellulose for application in wound healing. Cellulose, 18(4), 859-867.
Czaja, W. K., Young, D. J., Kawecki, M., & Brown Jr, R. M. (2004). The future prospects of microbial cellulose in biomedical applications. Biomacromolecules, 5(6), 2073-2082.
Svensson, A., Nicklasson, E., Harrah, T., Panilaitis, B., Kaplan, D. L., Brittberg, M., & Gatenholm, P. (2005). Bacterial cellulose as a temporary skin replacement: A preliminary report. Biomaterials, 26(3), 419-431.
Moon, R. J., Martini, A., Nairn, J., Goff, J., & Peças, R. (2011). Cellulose nanomaterials review: Structure, properties and nano-biotechnology applications. Chemical Society Reviews, 40(7), 3941-3994.
Silva, T. R. S. da. (2012). Desenvolvimento de Hidrogéis de Celulose Bacteriana para Cultura de Células e Permeação de Biomoléculas. Universidade Federal de Santa Catarina.
Silva, R. A. et al. (2022). Estratégia para o Ecodesign da Produção de Celulose Bacteriana. In: Coletânea de Artigos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Naturais, Editora e-Publicar.
Hestrin, S.; Schramm, M. (1954). Synthesis of cellulose by Acetobacter xylinum. 2. Preparation of freeze-dried cells capable of polymerizing glucose to cellulose. Biochem. J., 58(2), 345–352.
Ramana, K. V.; Tomar, A.; Singh, L. (2000). Effect of various carbon and nitrogen sources on cellulose synthesis by Acetobacter xylinum. World Journal of Microbiology & Biotechnology, 16(3), 245–248.
Carvalho, C. E.; Gonçalves, D. A. R.; Coimbra, L. O. (2009). Dextrinas como modificadores para hidrogéis de engenharia tecidual. Polímeros: Ciência e Tecnologia, 19(4), 300–305.
Piccinno, F.; Hischier, R.; Seeger, S.; Som, C. (2016). From laboratory to industrial scale: a scale-up framework for chemical processes in life cycle assessment studies. Journal of Cleaner Production, 135, 1085–1097.
Çakar, F. et al. (2014). Production of bacterial cellulose by Gluconacetobacter hansenii in molasses and molasses-based media: optimization and scale-up. Journal of Industrial Microbiology & Biotechnology, 41, 491–501.